quinta-feira, maio 22, 2003

Para as mulheres poderosas , originais e maravilhosas e
alguns homens com um pouco de alma feminina!



Texto de Rita Lee

"Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor.

Vinham da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava

tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora

acusada de não ser mais virgem e os dois irmãos a subjugavam em

cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da
família
lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se
tinha
ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais

respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais
dançou
nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como,
nem
com quem.



Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar,

saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar
com o
namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu
passar
no exame ginecológico. O laudo médico registrou "vestígios
himenais
dilacerados", e os pais internaram a pecadora no reformatório
Bom |
Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente esqueceu, morrendo

tuberculosa.



Estes episódios marcaram para sempre a minha consciência e me

fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens
têm
sobre o corpo das mulheres. Ontem, para mutilar, amordaçar,

silenciar. Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos

estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados por

seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em
alegorias
para entrar na moda da peitaria robusta das norte-americanas.

Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e

sensuais, garantindo bom sucesso nas passarelas do samba.

Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o traçado do

dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem
irresistíveis
diante dos homens. E, com isso, Barbies de fancaria, provocaram
em
muitas outras mulheres - as baixinhas, as gordas, as de óculos
um
sentimento de perda de auto-estima. Isso exatamente no momento
em
que a maioria de estudantes universitários (56%) é composta de

moças. Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa

científica, na política, no jornalismo. E no momento em que as

pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é
preciso

feminilizar o mundo e torná-lo mais distante da barbárie

mercantilista e mais próximo do humanismo.

Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade.
Até
porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem
pênis,
sem o poder fálico da penetração e do estrupro, tão bem

representado por pistolas, revólveres, flechas, espadas e
punhais.
Ninguém diz, de uma mulher, que ela é de espadas. Ninguém lhe
dá,
na primeira infância, um fuzil de plástico,como fazem com os

meninos, para fortalecer sua virilidade e violência.

As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que
derramá-lo
na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, os exércitos

regulares ou as gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos de
sua
convivência e os colocam na marginalidade, na insegurança e na

violência.

É preciso voltar os olhos para a população feminina como a
grande
articuladora da paz. E para começar, queremos pregar o respeito
ao
corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque

carregam latas d'água e trouxas de roupa. Respeito aos seus
seios
que perderam a firmeza porque amamentaram seus filhos ao longo
dos
anos. Respeito ao seu dorso que engrossou, porque elas carregam
o
país nas costas. São as mulheres que imporão um adeus às armas,

quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer a

ternura de suas mentes e doçura de seus corações.

"Nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda. E
meu|
peito não é de silicone; sou mais macho que muito homem".

Rita Lee

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